Hibisco Roxo: a leveza em uma dura história de transformação
Há algum tempo eu não lia um livro tão sensível e tão duro ao mesmo tempo. Hibisco Roxo, de Chimamanda Ngozi Archie, é a história de uma família africana católica contada a partir do ponto de vista da filha mais nova, Kambili. O pai dela é um grande empresário, muito rico e conhecido na comunidade devido ao seu altruísmo. Ele também é um católico fervoroso, que mantém a família totalmente sobre o seu controle e superproteção. Kambili e seu irmão, Jaja, devem seguir diariamente um horário restrito criado pelo pai, no qual rezam todos os dias, são obrigados a ser os melhores da turma e proibidos de entrar em contato com qualquer tipo de costume ou pessoa “pagã”, inclusive o próprio avô, que acredita nos deuses da cultura nigeriana.
Por causa da superproteção do pai, os dois adolescentes e a mãe vivem uma situação de medo constante dentro de casa, e as coisas funcionam unicamente para satisfazer a vontade do chefe do lar, mesmo que isso coloque a integridade física dos três em risco. Nessa história, o castigo e o amor se confundem, assim como os valores católicos.
A família mora com luxo e prosperidade, e quando recebem a visita da tia, Ifeoma, uma professora universitária, e dos seus três filhos, Kambili e Jaja estranham o comportamento deles, que além de um perfil desafiador, têm um riso solto e parecem estar sempre felizes, mesmo passando por dificuldades financeiras. Quando a tia convida os irmãos para passar um tempo em sua casa, em Nsukka, para que eles e os primos criem uma proximidade, os dois provam uma realidade diferente da sua, vivenciando situações como falta de luz e água, e têm uma nova perspectiva a respeito do que é ser uma família, da sua própria liberdade e do amor.
Apesar da escrita da autora ser leve e muito sensível, não posso dizer que Hibisco Roxo se trata de uma história leve, mas também não é daqueles livros que são tão densos que precisamos dar uma pausa para “respirar”. Chimamanda nos mostra uma história dura com muita gentileza, de forma que o livro não fica cansativo e nem pesado demais.
Há questões relevantes que são abordadas no livro e que precisam ser levadas em consideração. A autora trabalha com contrastes para mostrar a realidade dos seus personagens, bem como a sua transformação. Temos a relação do pai com o catolicismo e toda a interpretação deturpada que ele tem a respeito dos ensinamentos da Igreja é colocada lado a lado com a relação que o avô das crianças têm com as tradições africanas, envolvendo ainda a tia Ifeoma, que apesar de católica, tem profundo respeito pelas crenças tradicionais nigerianas. Também há a percepção de aprisionamento que Kambili e Jaja sentem depois de voltarem para casa, que contrasta com a liberdade que conheceram na casa dos primos, e também as diferenças sociais e intelectuais gritantes entre as duas famílias e as personalidades das primas, da mesma idade, criadas de maneiras totalmente distintas.
O que fica para o leitor é a percepção de que o livro é sobre o poder de ser quem você é. Ifeoma e os filhos, mesmo com todas as dificuldades, têm a condição de ser eles mesmos, enquanto Kambili e Jaja, aprisionados pela opressão paterna, têm condições de ter tudo, menos o poder de escolher quem querem ser. É o tipo de livro em que o personagem tem uma evolução linda de se acompanhar. Kambili tinha tudo para ser uma menina que ia me irritar durante todo o livro, até por causa da sua criação e obediência constantes, mas tudo o que eu queria fazer enquanto lia era abraçá-la.
“Naquele instante, percebi que era isso que tia Ifeoma fazia com os meus primos, obrigando-os a ir cada vez mais alto graças à forma como ela falava com eles, graças ao que esperava deles. Ela fazia isso o tempo todo, acreditando que eles iam conseguir saltar. E eles saltavam. Comigo e com Jajam era diferente. Nós não saltávamos por acreditarmos que podíamos; saltávamos porque tínhamos pânico de não conseguir.” p. 238
A respeito do final, esta é a segunda vez que Chimamanda me surpreende (a primeira foi em Americanah). Já posso perceber que é impossível prever como as suas histórias irão terminar. No caso de Hibisco Roxo, sem spoiler, fiquei bastante satisfeita com o destino que a autora deu aos seus personagens, o que não significa necessariamente que existe um final feliz aguardando por todos eles. Aos 45 minutos do segundo tempo, acontece uma inesperada reviravolta na história, que não abala a sua consistência, nem sua fidelidade. Valorizo autores que sabem como terminar suas narrativas, pois considero que, mais importante do que um final feliz, é preciso que o leitor termine a história convencido da veracidade dela na vida dos personagens.
Hibisco Roxo foi editado pela Companhia das Letras e traduzido por Julia Romeu. A edição conta com 324 páginas e uma capa linda. Aliás, a editora está de parabéns, pois todas as edições dos livros de Chimamanda estão belíssimas e me deram a impressão de terem sido feitas com o carinho e cuidado que a autora merece. Recomendo muito essa leitura.
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*Imagens: Freepik, Companhia das Letras, Wonderlane.