A sensibilidade de Jessica: quando força feminina virou sinônimo de coração de pedra?
“Chorar causa rugas”. Você já ouviu essa frase? Ao que tudo indica, nós e muitas gerações fomos socialmente moldados para acreditar que demonstrar emoções é a mesma coisa que deixar uma fraqueza à mostra. Com esse pensamento, muitas pessoas vivem por aí reprimidas e deprimidas, transbordando raiva e indiferença diversas vezes em cima de gente que nada tem a ver com os seus choros acumulados. Outros preferem a boa companhia da solidão junto a uma garrafa de whisky nas ruas escuras de Nova York como Jessica Jones.
A detetive particular nos foi apresentada em novembro de 2015 através da leva de adaptações de quadrinhos da Marvel que a Netflix tem realizado nos últimos anos. Ela foi mais que bem-vinda, foi super elogiada e a sua continuação, muito aguardada. A protagonista conquistou uma legião de fãs com sua cara amarrada, quebrando o barraco e sem papas na língua. Nós conhecemos uma Jessica Jones (Krysten Ritter) revoltada e cheia de raiva, mas super forte e com princípios – ainda que um pouco distorcidos.
A primeira temporada também nos deu de presente um vilão maravilhoso. David Tennant entregou uma das suas melhores – quiçá a melhor e, sim, o Doctor também – performances da sua carreira na pele de Killgrave. Ele e Ritter tiveram uma química perfeita, a qual colaborou diretamente para o sucesso da temporada. Killgrave trazia à tona um passado que Jessica preferia esquecer. Seu poder de manipulação transformou a vida da protagonista em um cotidiano preenchido de culpa e memórias incômodas. Um tanto diferente dos quadrinhos que a originaram, a Jessica Jones de Melissa Rosenberg, produtora da série, inspirava e capturava o público pela sua bad-assice ao lidar com situações tão complicadas de forma tão impressionante.
A questão aqui é: por que será que ela deixou de ser bad-ass na segunda temporada?
A resposta para mim é: ela não deixou. Ouvi muitas críticas a respeito da nova parte da história de Jessica e a maioria delas rejeitava a sensibilidade da personagem. Agora, me acompanhem. Nessa nova fase, o caminho escolhido foi perseguir as origens dos superpoderes de Jessica. Após um acidente que matou toda a sua família, Jones ganhou super-força, cura rápida e traumas de sobra. Pouco explorada na primeira temporada, essa busca por respostas obviamente abriria gavetas e portas emperradas e marcadas por teias de aranha e poeira, as quais Jessica passava o mais longe possível por anos.
⇒ Segura que a onda de spoiler começa aqui. ⇐
Dessa vez, nós somos mergulhados nas memórias de Jessica quer queiramos ou não graças a Trish Walker (Rachel Taylor). Após convencer Jones a se juntar na investigação sobre a ICH, local onde Jessica teria ganhado seus poderes, as duas descobrem muito mais do que o esperado no passado da clínica. Na verdade, Jessica nunca achou que a história daquele lugar se confundiria tanto com a sua. A maior chave para a abertura a sensibilidade de Jessica está no retorno da sua mãe, a quem nossa protagonista julgava estar morta há dezessete anos, assumindo um papel de maníaca assassina.
Veja bem, se a sua mãe voltasse do mundo dos mortos, as chances de que você ficasse abalado seriam estratosféricas, não é? Então por que cargas d’água Jessica não ficaria? Principalmente porque a perda de sua mãe constitui em um de seus traumas iniciais que desencadearam muitos outros no decorrer da sua vida. Sentir suas emoções transbordarem não é um sinal de fraqueza, amontoá-las dentro de si pode ser.
“I’m like my mother in one way. Neither of us get a happy enfing. This is how I lose my mom.”
“Eu sou como a minha mãe de uma forma. Nenhuma de nós terá um final feliz. É assim que perco a minha mãe.”
Se pararmos para analisar, na primeira temporada, Jessica precisou lidar com um grande problema, afinal Killgrave a queria para si sem levar em conta os impactos que seu egoísmo exercia sobre ela. Na segunda, no entanto, além da sua mãe ser uma super-poderosa assassina com tendências a se descontrolar e se perder em episódios de raiva, ela precisa lidar com o comportamento obsessivo e as recaídas de Trish, a pressa de Jeri (Carrie-Ann Moss) com um caso complicado e a cobrança por reconhecimento (merecido!) de Malcolm (Eka Darville). Ou seja, o mundo da Alias Investigações está desabando, não é mesmo?
Pela primeira vez, Jones está reconhecendo seus grandes traumas e trabalhando eles – mesmo que de forma forçada. Esse processo nunca é uma coisa simples e fácil, indolor. Deixem Jessica chorar, deixem a menina sentir. Em nenhum momento, ela perdeu a sua super-força porque algumas lágrimas escaparam, muito menos a sua bad-assice. Uma mulher forte não precisa engolir suas dores ou seus problemas para ser forte. Muitas vezes eles são grande fonte de força – quando usados para o bem. São deles que vem as lições e não é graças a eles que nenhuma de nós pode ter momentos de fraqueza. Na real, ser mulher nesse mundo já é um passe automático para ter sua força e capacidade de seguir em frente testados constantemente. Imagine então se tivéssemos, como ela, nosso código genético modificado?
Critiquem a temporada por outros motivos: seja pela irritação causada por Trish que, por favor, poderia ter sido menos, bem menos, quase nada; seja pela vilã um tanto decepcionante ao comparada a Killgrave. Só não digam que a série desandou pelas lágrimas de Jones. Ela é ainda humana, bastante humana e, se sobrecarregada ou triste, tem todo o direito de chorar, de sentir. Com um final emocionante e trágico, a segunda temporada de Jessica Jones mostrou que a personagem cresceu e está mais aberta a mudanças, deixando-nos esperançosos para uma próxima fase mais impactante e viciante. Sem corações de pedras para Jones, por favor.