Literatura,  Resenhas

Kindred: Laços de Sangue | Uma protagonista presa pelo tempo

Quando ouvimos algo sobre viagem no tempo, a ideia soa espetacular, glamourosa e minimamente instigante. Imagens de De Volta para o Futuro e Doctor Who surgem à mente e nós pensamos em pessoas célebres que já morreram e queríamos conhecer, quais seria o real tamanho dos dinossauros, ou em que ano nós finalmente teríamos carros voadores. Não seria incrível? 

Há grandes chances de a resposta ser não. Exatamente como foi para Dana.

O ano é 1976. 9 de junho para ser mais exata. Dana acaba de se mudar de Los Angeles para Altadena em um novo apartamento com Kevin, seu marido. O casal de escritores tinha acabado de alcançar o sucesso no mundo literário e a vida finalmente começou a se tornar mais fácil, mais estável. Ainda assim, tudo era novidade, movido por novas situações para se acostumar. Tão recente que eles ainda desempacotavam livros de caixas para arrumá-los – um ótimo jeito de passar seu aniversário de vinte e seis anos, não acham? 

A atmosfera de recomeço se deteriora em um piscar de olhos no momento em que Dana sente uma tontura e desaparece de sua sala de estar para reaparecer a beira de um rio, com um menino se afogando. Ela não hesita em ajudar a criança, mas não compreende que a partir daquele momento os próximos meses de sua vida estariam conectados àquela criança, salvando-o de perigos mortais e iminentes, durante muitos anos. Uma vida localizada na Maryland escravocrata, em 1819. 

A viagem no tempo

O choque cultural de uma viagem no tempo parece, ao meu ver, ainda mais impactante do que conhecer um novo lugar na sua mesma época por mais diferente que ele seja. Há limitações muito maiores que dizem respeito a linguagem, costumes, roupas, saúde, higiene e principalmente desenvolvimento tecnológico, claro. Por isso, é um tópico muito interessante e bastante usado na ficção-científica devido a sua abrangência, um enorme leque de possibilidades. 

Em Kindred: Laços de Sangue, a viagem no tempo é um start para a história real acontecer. Um mecanismo orbitante da trama. O tempo passa de formas diferentes em 1976 e 1819. Enquanto no primeiro Dana passa poucos segundos, em Maryland se passaram horas. Os meses de Maryland são horas em Altadena. E essa confusão, somada a imprevisibilidade de quando Dana será transportada, fazem o livro correr mais rápido, por mais incrível que pareça. Os capítulos, inclusive, são desenvolvidos de forma a lembrar a quantidade de tempo passado em Altadena ou Maryland. 

Agora, deixo um questionamento: quando realizada sem tecnologia, a viagem no tempo ainda configura um livro como ficção-científica? A explicação que recebemos para o deslocamento de Dana é um tanto vaga, sem pormenores que justifiquem tal acontecimento. Ela simplesmente se sente tonta, desaparece e acorda em outro lugar. Isso é defendido por um grande spoiler que entregaria um ponto importante da história, mas digamos que não é suficiente. Nós leitores esperávamos um pouco mais sobre essa parte da Grande Dama da Ficção Científica. Sejamos justos, no entanto, o título não veio com um só livro, muito menos por Kindred

A Maryland pré-Guerra Civil

Alguns atos da humanidade são horrendos e não é novidade que a escravidão é um deles. O cenário do passado escolhido por Butler foi semelhante a muitos outros do mesmo período, caracterizado pela escravização de pessoas negras, vendidas e exploradas em situações pesadas, perigosas e árduas. Em detalhes trágicos e fortes, a narrativa de Kindred não falha em inserir sua protagonista – e nem a nós, leitores – na atmosfera e no cotidiano da época. A cada retorno de Dana nós ficamos abalados por alguma nova atrocidade cometida pelo todo poderoso dono da fazenda, Tom Weylin, pai de Rufus, o menininho que constantemente precisa ser salvo. E, acreditem, como Dana mesmo sabe, a fazenda Weylin não foi das piores. 

Para tornar o livro mais crível, Butler fez uma pesquisa profunda sobre o dia-a-dia de uma fazenda escravista da época e essa dedicação fez com que a cada página nós temêssemos ou nos infiltrássemos tanto quanto Dana. O tempo em que nossa protagonista passa lá, conversando com figuras que marcaram a cultura americana e a história da escravidão (Pai Tomás, por exemplo, o escravo mais velho que ajuda a acalmar outros escravos) e que foram duramente criticadas no período de manifestações contra a segregação racial no meio do século passado, cultiva uma aceitação, uma adaptação quase que por osmose.

“(…) A facilidade me pareceu assustadora. – falei – Agora entendo por quê.
— O quê?
— A facilidade. Nós, as crianças… Não sabia que as pessoas podiam ser condicionadas com tanta facilidade a aceitarem a escravidão.”

O livro é de Dana

Narradora e protagonista, Dana é uma mulher em perigo que luta até as últimas forças e driblando sua moral para sobreviver na fazenda Weylin em meio a ameaças, trabalho duro e chicotadas. Por que para ela foi tão difícil? Porque Dana era uma mulher negra. Esse é a tacada de mestre de Butler. Quando era criança, na década de 1950, a autora ouviu de sua tia que negros não viravam escritores – fruto de um pensamento originado em anos de segregação – e, também motivada por programas de ficção-científica de TV ruins, Butler decidiu que escreveria histórias tão boas que venderiam milhões de cópias. 

Não satisfeita em escrever um personagem realista e uma narradora forte, Butler desenvolveu personagens masculinos problemáticos, que nos faz lembrar e discutir alguns estereótipos como o homem dominador-tudo-é-meu-por-direito e o homem mocinho-super-herói-que-precisa- que-a-moça-precise-dele. Sem delongas ou spoilers, essas personalidades são algo a se lembrar durante a leitura do livro. 

Apesar de Kindred ser meu primeiro contato com a autora, é só pesquisar um pouco na internet para ver que a Butler gosta de explorar conflitos sociais, como questões de raça e gênero. O fato de Dana ser uma mulher negra no sul dos Estados Unidos no século XIX é um duplo perigo e o dobro de itens a ser analisado e trabalhado. O medo da morte é algo constante, mas a vida não é nem um pouco mais fácil. Dominada por situações como estupro e violência, a mulher é ainda considerada inferior. Uma mulher negra e letrada como Dana é uma ameaça. Morrer quase soa mais como um alívio do que algo a se evitar. Kindred e Dana acabam sendo chamarizes, marcos com liberdade criativa para que não esqueçamos que tamanhas atrocidades aconteceram e Butler domina tanto a trama quanto essa finalidade com maestria.

Portanto…

Kindred: Laços de Sangue é um livro para aqueles de estômago forte. Contudo, suas cenas gráficas são um pouco apaziguadas pela voz bastante objetiva de Dana que, além de dar um ritmo mais rápido de leitura, instiga o leitor a não abandonar a história e aumenta a sua curiosidade. Precisamos saber o tempo todo se ela conseguirá ou voltar para casa, ou achar pessoas que está procurando, ou escapar de algum problema, entre várias outras coisas. Com poucos detalhes incômodos – alôu, viagem no tempo sem explicação –, é um livro essencial para pensarmos sobre a humanidade e seus preconceitos. É uma autora que precisa de mais atenção no Brasil (obrigada por trazê-la, Morro Branco ♥ ). É uma leitura mais que recomendada, favoritada.

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