Laranja Mecânica e o impressionante talento linguístico de Anthony Burgess
Laranja Mecânica é uma obra fantástica. É engraçado eu começar o texto dessa maneira, mas irei listar os motivos para tal afirmação, prometo. Anthony Burgess, o autor, estudou literatura inglesa e língua inglesa pela Universidade de Manchester. O que é mais fantástico que o próprio livro é o currículo desse cara: foi professor, dramaturgo, poeta, compositor, linguista, tradutor e crítico. Ele serviu ao exército durante a Segunda Guerra Mundial e, quando essa parte horrível da história finalmente acabou, ele ficou desempregado.
Nesse momento de sufoco, Anthony foi diagnosticado com um tumor no cérebro, e para os médicos ele viveria apenas um ano. Isso marcou sua entrada no mundo como escritor, pois sua preocupação era não deixar sua mulher na pobreza. Dessa maneira, escreveu diversos livros no período de um ano de vida e Laranja Mecânica foi seu décimo oitavo livro. Mas a previsão médica estava errada, e ele viveu até os 76 aninhos.
Depois dessa rápida biografia, entramos no universo do livro. Burgess nos apresenta uma distopia encaixada em um possível futuro próximo da sociedade inglesa. A história é narrada por Alex, um jovem que tem prazer em transgredir regras e na violência, seja ela qual for. O narrador-personagem é extremamente descritivo, transmitindo quase uma imagem vívida das cenas narradas. Ele é muito eloquente e persuasivo e vive a vida como quer do lado dos seus comparsas, ou drugues, se preferir chamar.
Um dia, seus drugues, que já não estão muito felizes com a liderança tirana de Alex, o deixam para trás em uma das suas missões para ser preso pela polícia. Desde então, ele fica na prisão até ser chamado para um procedimento diferente: ele deixará de ser ruim e se tornará um cristão nas atitudes independente do que ele queira. E é nesse momento que ele é simplesmente usado por diversas forças e, assim como ele usou outras pessoas, ele sofre praticamente o mesmo sofrimento que ele causou aos outros. Foi interessante perceber que, nas próprias palavras dos personagens, “as cenas de ultraviolência” me deixavam nervosa, mas eu não conseguia largar o livro.
Quebra da quarta parede em Laranja Mecânica: “Alex é, ó meus irmãos, um grande e humilde narrador.”
Essa frase é um exemplo de quebra da quarta parede que o autor utiliza em seu texto. Alex é um personagem vivo, contando sua história e sempre conversando com o leitor. Me senti próxima dele, e foi surpreendente sentir pena e empatia por uma pessoa tão ruim e ao mesmo tempo tão desafortunada.
Uma frase que não me sai da cabeça, dentre muitas do livro, é: “Um homem que não pode escolher deixa de ser um homem.” Essa obra, além de tratar da psicopatia e a violência de perto, discorre muito sobre o livre-arbítrio e o quanto ele é importante dentro do que nos faz ser humano. E ainda sobre até onde as pessoas iriam para conseguir paz, ou simplesmente “as pessoas venderão a liberdade por uma vida mais tranquila.” Essa frase faz parte da cultura brasileira, e essa ideia vive numa das minhas músicas preferidas d’ O Rappa (SIM, JURO. NÃO TÔ BRINCANDO.). Na música “Minha alma (A paz que eu não quero.)“, fala-se sobre a vida dentro de um condomínio, um lugar apertado e todo fechado que tira a liberdade, por conta de mais segurança. Essa obra é totalmente atemporal e dialoga muito com a nossa realidade.
O lado linguista de Burgess aparece no dialeto próprio do livro, como gírias de gangue ou de faixa-etária específica, que causa estranhamento à princípio, mas depois a sensação é de participar desse mundo proposto pelo autor. O interessante é notar que Alex era um adolescente mimado que queria fazer tudo que desse na cabeça, e tinha uma tribo à qual ele pertencia e a língua é uma forma de excluir pessoas, inclusive nós leitores. Vou confessar para vocês que nas primeiras páginas eu corria para o glossário da língua chamada nadsat no final do livro, e depois de pouco tempo eu não precisava mais, seja por conhecer as palavras, seja pelo contexto.
É importante ressaltar que eu gostei dessa experiência principalmente por estudar línguas e gostar de tradução ser literalmente louca por tradução, porém a edição traz um aviso muito pertinente: você pode mergulhar nesse livro de cabeça e pegar apenas pelo contexto o que as gírias faladas por Alex significam, ou ler com conhecimento de causa pelo glossário que acompanha a edição. Das duas maneiras, te garanto que a experiência será surpreendente.
Um parágrafo especial vai para a tradução do livro e o cuidado da editora Aleph. Essa edição tem diversos textos sobre o autor, o universo do livro, e o mais legal para mim que é um texto que explica como a tradução foi feita, que trouxe o melhor dos dois mundos: não são palavras completamente estranhas ao leitor uma vez que eles acharam um encaixe com a língua portuguesa. Mas o estranhamento permanece lá, a única coisa que muda é a sensação da palavra ser estrangeira, ela está de acordo com a norma gramatical portuguesa, apesar de não fazer parte da linguagem oral. Eu acredito que deve ser essa sensação que um leitor inglês tem ao ler sua língua misturada com o dialeto nadsat, considerando que inglês é a língua da obra.
Finalmente, a mídia feita para as telas por Kubrick é uma ótima adaptação. As cenas estão quase todas lá dentro, porém tem aquelas diferenças que cabem a adaptação. Uma delas é a idade do Alex, no livro ele tem 14-15 anos, no filme ele é mais velho. O próprio desfecho do personagem principal é diferente no filme, e acho que isso se deve a idade… Mas vou manter esse mistério no ar, pois vale muito a pena tanto ler quanto ver o filme. Os dois são indispensáveis.
E a discussão sobre Laranja Mecânica nunca termina, e é exatamente o que a mantém no patamar de clássico. A sensação que ela nos passa é de manter a alma do escritor que era crítico, professor, tradutor, linguista… Esse livro carrega uma parcela do conhecimento e perspicácia de seu criador e cabe a nós, leitores, manter essa memória viva, seja dentro ou fora de nós. Primeira vez que termino um post com um pequeno apelo: Leia esse livro. Só leia. É essencial à vida.
Ficha Técnica
Título: Laranja Mecânica | Autora: Anthony Burgess | Editora: Aleph | Tradução: Fábio Fernandes | Edição: 1ª | Idioma: Português | Especificações: 224 páginas | ISBN: 9788576570035 | Adicione: Skoob – Goodreads