Resenha | A vida compartilhada em uma admirável órbita fechada, de Becky Chambers
No ano passado, Becky Chambers ganhou meus olhos, meu coração e qualquer espaço na minha estante pelo resto da minha vida com A Longa Viagem a Um Pequeno Planeta Hostil. Publicado pela DarkSide Books, o primeiro livro da trilogia Wayfarers acompanhava a diversa e incrível tripulação da nave Andarilha a caminho de um serviço que pagará muito bem, mas poderá custá-los muito. No final daquelas magníficas páginas, conhecemos a personagem que será a protagonista da sequência, A Vida Compartilhada em uma Admirável Órbita Fechada. Bom, mais ou menos.
Para dar apenas um spoiler leve, essa personagem se transformará e nos dará Sidra. Sidra é uma IA – inteligência artificial – que acordará em um corpo orgânico. Com a ajuda de Sálvia, personagem bem bacana do primeiro livro, a IA travará uma batalha interna com seus novos limites em Porto Coriol. No entanto, nós oscilamos entre esse processo de auto descoberta e afirmação e a história de Sálvia, que um dia foi Jane 23, mini-seletora de sucata em uma fábrica de coleta seletiva controlada por outras IA.
No primeiro livro da série, nós refletimos sobre a diversidade e seus desdobramentos, seu poder e seu potencial. Enquanto isso, no segundo, nós falamos sobre a relação do humano com a tecnologia e seus materiais. Sidra é basicamente um software, poderoso, mas imaterial, inorgânico. Sua capacidade de atualização e aprendizado, somada a seu longo alcance na Rede a transformam em algo mais, se une a empatia, curiosidade e possibilidade de reflexão e nos faz questionar até onde uma tecnologia “pensa”. Confesso que para mim, em 2018, essa ideia é muito distante. Mas para os cientistas japoneses e seus robôs, ou estudantes do MIT, não chega a ser tanto assim, não é mesmo?
Sidra tem personalidade, crises e reflexões. Ela habita, agora, um corpo humano. Mas as leis da CBG não aprovam sua existência. Ela, Sálvia e Azul fazem o máximo para manter seu segredo, enquanto Sidra tenta se entender e se encaixar no seu “kit” – como chama o seu corpo. Em uma metáfora espacial e tecnológica, A Vida Compartilhada em uma Admirável Órbita Fechada fala sobre o processo que muitos de nós passamos de aceitarmos a nós mesmos como somos, aprender a nos amarmos e a mudar quando necessário. Encontrar nossa própria identidade nunca foi tão bem representado. Afinal, quem são eles para dizer que Sidra não é humana suficiente? Através de um processo que lembra O Homem Bicentenário, o segundo volume da série de Becky Chambers nos faz questionar também o que faz de nós humanos. Basta apenas sermos uma espécie ou a humanidade se define por muitas outras coisas a mais?
A história de Sálvia, por sua vez, debate o mesmo tópico de forma diferente e com certos extras. Nós lemos sobre a origem difícil de Sidra e o quanto ela teve que ser forte para sobreviver. Saindo de uma realidade estranhamente igualitária, onde pensar por si mesma e até mesmo em si mesma era proibido, Sálvia encontrou em outra IA a fonte para montar sua identidade. Se uma IA a cria, quão humana ela pode ser? Além disso, sua origem genética colabora para tal questão. Nós usamos a expressão ser humano para dois caminhos: em um deles somos uma espécie de ser vivo, em outra somos benevolentes. Existe um certo e um errado?
Sidra e Sálvia mostram que não importa de onde você vem, ou como a sociedade te diga que deve ser, você só muda por você e é possível se reinventar. A Vida Compartilhada em uma Admirável Órbita Fechada é diferente de todo scifi que você já tenha lido. Adeus, batalhas intergaláticas, olá, personagens inteligentes e universo espetacular. Becky Chambers dá continuidade à linha de autoras na ficção-científica que consegue abalar mundos e faz cada leitor mergulhar em uma reflexão filosófica importante a cada livro.
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