Resenha | Rastro de Sangue: Jack, o Estripador, de Kerri Maniscalco
Acredito de pé junto que algumas celebridades moldam a sua época, se tornam ícones tão intrínsecos àqueles anos que seria impossível imaginá-las em outro período. O final do século XIX na Inglaterra é um desses momentos bem singulares em que personalidades como Oscar Wilde e a própria Rainha Vitória ajudavam a construir um cenário bem peculiar, mergulhados na Belle Époque. Era também, no entanto, um ambiente obscuro preenchido de carruagens negras, ruelas mal iluminadas e cantos de miséria gritante. É exatamente desta parte que surgiu a figura de Jack, o Estripador, que assombrou a região londrina de Whitecastel por anos, matando mulheres prostitutas e roubando delas alguns órgãos.
O infame assassino em série fez fama não só pela crueldade que aplicava em suas vítimas, mas pela impunidade. Passeando pelo imaginário da sociedade da época, o mistério envolto a sua identidade e a sua motivação fez Jack ser um dos mais assustadores criminosos até hoje. Muitas teorias e suspeitas foram desenvolvidas e aplicadas, ainda que nenhuma com certeza completa, porém a neblina sob a sua história rendeu muito mais do que manchetes de jornais na época. Por anos, Jack, o Estripador se tornou uma inspiração para as mais diversas histórias. Histórias como Rastro de Sangue, de Kerri Maniscalco.
O Livro
Aubrey Rose Wadsworth é a filha mais nova de um Lorde inglês, uma jovem rodeada de pompas, bordados e chiquês típicos da época. Não obstante, ela é também uma aluna prodígio da medicina forense, dona de uma curiosidade imensa sobre o corpo e a mente humana. Seu tio, Johnathan Wadsworth, é um médico e professor da área que transita na linha tênue entre a genialidade e o respeito dos seus colegas e a loucura pelo amor a profissão. É justamente com ele, seu charmoso e bonito assistente, Thomas Cresswell, e a companhia de um ou dois cadáveres que Aubrey Rose gosta de passar as suas tardes, descobrindo as entranhas humanas.
“‘Se ao menos houvesse uma forma de curar a doença mais fatal da vida…’, murmurei para mim mesma.
‘Que seria qual, exatamente?’
Olhei de relance para meu irmão e depois desviei o olhar, dando de ombros. ‘A morte.'”
Quando seus serviços são necessários para ajudar na investigação do assassinato brutal de uma prostituta em Whitecastel, Aubrey descobre que não conseguirá dormir a noite enquanto não fizer tudo o que puder para descobrir a identidade do responsável por aquilo. Menos ainda, quando o próximo corpo em condições parecidas surge pouco tempo depois. Ela firma uma parceria com Thomas em busca de respostas, correndo contra o tempo para que não haja outras vítimas. A cada passo em frente, contudo, nossa protagonista percebe que as pistas podem ganhar soluções bastante indesejadas numa escala pessoal e que sua vida como conhecia pode estar cheia de mentiras muito bem escondidas.
Impressões em Rastro de Sangue
Nós podemos ser três pessoas quando nos deparamos com o medo: as que correm, as que estancam e as que enfrentam. Aubrey Rose é definitivamente todas as três juntas, pendendo mais para a coragem de seguir em frente. Afinal, investigar é uma vocação. A curiosidade da nossa protagonista é o motor para sua habilidade investigativa, sua sede por respostas e, muitas vezes, desafia todos os pré-conceitos estabelecidos pela sociedade, pela sua família e por ela mesma.
Ao se deparar com a suspeita de um assassino monstruoso, Aubrey Rose e sua vocação montam uma história deliciosa de ler, ainda que um tantinho nojenta – convenhamos que a descrição de autópsias não são o meu conceito de lazer, mas, se para ela está bom, para a gente também. Porque, assim, nós ganhamos uma trama muito envolvente e apaixonante. A cada página nos é possível perceber o quão importante para ela a investigação e sua profissão são, e também o quanto ela se debate com o luto pela sua mãe, as incertezas de uma paixão e, acima de tudo, a necessidade por justiça. Não importa qual seja o seu custo.
Isso sem falar que a sua profissão desafia padrões morais da época em todos os jeitos possíveis. Ela é uma mulher, atuante na área de medicina, forense, legista, um meio dominado pelos homens e bastante delicado por si só. É comum nos depararmos durante a leitura com questionamentos a suposta superioridade masculina da época e a maneira como Aubrey Rose lida com isso nos enche de orgulho ao ler palavras bem feministas e tão sensatas.
“‘Oh? Me mostre no dicionário médico onde está escrito que uma mulher não consegue lidar com essas coisas. Do que é feita a alma de um homem que não exista na alma de uma mulher?’, provoquei. ‘Eu não fazia a mínima ideia de que minhas entranhas eram compostas de algodões e gatinhos, enquanto a alma de vocês, homens, são cheias de aço e partes mecânicas.'”
Kerri Maniscalco construiu um livro bastante fluído e leve, embora o tema base não seja nem um pouco. Ele, inclusive, nos deixa com vontade de estudar mais sobre a história do caso Jack, o Estripador tão profundamente quanto a autora fez para escrever Rastro de Sangue. Sua pesquisa foi bem embasada, sem deixar a história chata, muito pelo contrário. Maniscalco soube driblar o excesso de horrores sem prejudicar a narrativa, adicionando nas doses certas questões como amor, família, hábitos culturais, entre outros mais que enriquecem o livro.
Se Aubrey Rose foi uma protagonista de primeira, o resto deles não ficam muito para trás. Os irmãos Wadsworth, pai e tio dela, são excêntricos à sua maneira, mas ambos geniais na sua área. Seu irmão é a cola da família após a morte da mãe e oscila bem entre a camaradagem e a proteção para com a irmã. Sua tia Amelia e sua prima Liza adicionam um toque de comédia e amizade respectivamente – gostaria muito de ver mais Liza nos próximos capítulos da vida de Aubrey Rose. E, claro, como não comentar Thomas Cresswell, o resultado da óbvia inspiração da autora em Sherlock Holmes.
O notório e ultrafamoso detetive criado por Arthur Conan Doyle e sua atmosfera estão muito presentes em Rastro de Sangue e se constituem na segunda ‘celebridade’ marcante da época. Somada a Jack, talvez as mais conhecidas do final daquele século. Deixar de inseri-lo na história de alguma forma seria bem ruim, mas inseri-lo demais também não ficaria bom. Que bom, então, que a autora soube ministrar essa reação química com destreza e conseguiu eliminar uma das coisas que mais desgosto das histórias de Holmes (sorry, apesar de gostar da série e filmes, os livros não me descem): o sentimento de confusão que se segue durante todos os casos enquanto Watson se vê perdido, até que Holmes o desvenda e depois explica como. Gostei de ver como pista após pista foi descoberta, ver como o cérebro de Aubrey Rose e Thomas funcionaram nessa parceria de sucesso.
A edição
Publicada pela DarkSide Books, sob a maravilhosa linha para autoras DarkLove, Rastro de Sangue: Jack, o Estripador veio com um design poderoso e totalmente condizente ao estilo da época, mas sem modificações extremas para a arte da capa. Muita gente se incomoda com pessoas em capas de livros, mas este prova que quando feito com bom gosto não é algo ruim.
A saga de Aubrey Rose e seu fiel escudeiro Thomas pode ser lida como livro único. Os ganchos para outras aventuras são pequenos, apenas portas entreabertas, enquanto o crime se resolve nas páginas que o volume se propõe. E, olha, que resolução. É possível ficar surpresa e achar previsível ao mesmo tempo? Pois foi bem isso o que aconteceu. O final do mistério se apresentou confirmando uma suspeita minha, mas um detalhe conferiu originalidade a previsibilidade. Deixou tudo mais interessante.
Rastro de Sangue: Jack, o Estripador é um livro mais que recomendado, especialmente para aqueles que, como eu, gostam de ler um pouco de tudo. Abra as páginas e se entregue a esse thriller, romance histórico, suspense, policial… Ah, se entregue a Aubrey Rose e os mistérios que a envolvem.