“Frankenstein ou o Prometeu Moderno” ou um debate filosófico na ficção científica | Resenha
Meu contato com Frankenstein foi gradativo. Começou igual a muitas outras pessoas, com a Família Addams e seu mordomo inspirado no clássico. O tempo passou e eu tive a oportunidade de assistir o musical da UniRio, O Jovem Frankenstein, que faz uma releitura do clássico de Mary Shelley de maneira bem humorada e irônica – uma baita de uma produção, viu?! E, por um bom tempo, ficou por isso mesmo. Até que a Darkside Books revelou que a história do cientista genovês e sua criatura inaugurariam a nova linha editorial Medo Clássico. Era a minha chance de conhecer a obra com o pé direito, e foi exatamente o que aconteceu.
Frankenstein
Me surpreendi ao perceber que Frankenstein é um relato emocionante de uma vida a um estranho camarada. O cientista Victor Frnkenstein é salvo por um navio que rumava para o Pólo Norte e, após se recuperar do evento, começa a narrar ao capitão seus infortúnios, começando desde a infância até aquele momento. O jovem genovês cresceu em uma família amorosa e confortável, teve irmãos companheiros e amigos fiéis, mas ele não estava satisfeito com a vida que levava e buscou encontrar no estudo e, principalmente, na ciência o que lhe faltava para preencher esse vazio. Foi através deles, porém, que ruína da sua vida teria início assim que Victor desafiasse a ordem da natureza e criasse um ser humano a partir da morte. Aterrorizado com o que fez, Frankenstein – que não é a criatura, e, sim, o médico – tenta fugir dos seus atos, mas dificilmente seria poupado de tamanha ousadia.
Mary Shelley criou algo até então inimaginável em Frankenstein: a inserção pura, básica e persistente da ciência na literatura a ponto de desafiar as normas naturais. Muitos afirmam que esta obra deu início ao gênero da ficção-científica e não é difícil perceber que isso tem um embasamento forte ao lê-la. Através de uma escrita dramática – como o seu narrador – e aterrorizante, a autora narra a vida de Victor com um talento incrível para um primeiro romance que mostraria a sua força e seu merecimento de permanecer na lista de grandes obras literárias mundiais como ainda tem e está. O melhor de tudo isso é que essa revolução literária foi escrito por uma mulher, sem estar associada ao romance amoroso ou dramático que eram o foco de autoras até então. Ela arriscou contar uma história para o mundo sem saber o que o mundo pensaria dela e sem se importar muito com isso.
Ler Frankenstein não é propriamente assustador. Pelo menos não foi para mim. E como foi uma base e já tem mais de um século de existência, muitos dos artifícios literários do enredo são previsíveis. Mas aqui está a questão: quando foi lançado, não era algo clichê. Ele revolucionou barreiras da literatura gótica maravilhosamente bem, sem perder o foco e a intenção da sua autora. Embora esses elementos não deixem a leitura nos dar medo, mesmo já conhecendo a história por alto, é impossível ler esse livro e não refletir sobre as questões que mais assustam o homem: a completude da vida e a sua mortalidade. A todo momento, Victor se pergunta se aquele era o jeito que ele queria viver a sua vida e amaldiçoa a relação do ser humano com a morte. De certa forma, Frankenstein é um tipo de livro que revela os podres da humanidade numa consulta amedrontadora com um sóbrio psiquiatra.
Os Contos e a edição da Darkside Books
A mortalidade era o tema que guiava Mary Shelley na sua carreira literária. É obviamente visto em Frankenstein e muito explorado em seus contos. Na edição da Caveirinha, os editores selecionaram quatro contos da autora para fechar o livro: Valério: o romano reanimado, Roger Dodsworth: o inglês reanimado, Transformação e O imortal mortal. O mais interessante dentre eles e dessa escolha foi a capacidade de mudança de escrita de Shelley mesmo tratando de uma base, um ponto de partida igual. O primeiro conto, do romano que volta à vida no século XVIII, traz duas vozes completamente opostas mas que complementam à narração da história. O segundo relata o caso como uma reportagem, colocando o tom jornalístico de forma bem pesada e fácil de se identificar. O terceiro, por sua vez, é mais poético porque, acredito eu, foi baseado justamente numa poesia de Lorde Byron. O último já lembra mais uma narrativa normal, evocando o passado no presente, mas recheado de alquimia e eu-lírico.
É muito interessante notar a flexibilidade da autora e perceber sua capacidade de fazer mais. Como é dito no livro, Frankenstein é uma obra que sobressaiu e superou seu autor. Mary Shelley não é tão conhecida como deveria ser e a habilidade presente nos contos só mostra o seu potencial talvez perdido no tempo. Aprendam: a voz de uma autora não deve ser calada por sua obra por mais incrível que ela seja. Frankenstein se prova uma boa leitura, sob os olhos e a imaginação de uma autora impecável.
Observação: O design da edição é estonteante. O trabalho de ilustração do livro demonstra um cuidado absurdo, tanto com os esboços de Andreas Vesalius e Étienne de la Revière quanto dos desenhos de Pedro Franz que acompanham a história. Sem deixar de comentar, é claro, do conjunto do design com a capa e mais que não me fez deixar de pensar que o furo no pé que está nela representa algo do dito popular que fulano deu um tiro no pé. Vamos combinar, foi exatamente o Victor Frankenstein fez, não é?